Em março de 2025, o Tribunal de Contas da União (TCU) proferiu o Acórdão nº 641/2025 – Plenário, que julgou parcialmente procedente uma representação sobre irregularidades no Pregão Eletrônico nº 90005/2024, conduzido pelo Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR).
Esse julgamento, embora técnico, traz importantes lições para gestores públicos, advogados, empresas licitantes e demais interessados em licitações públicas e controle da Administração. O caso envolve um tema muito atual: o uso indevido do formalismo, a falha na condução do processo licitatório, e a desclassificação sumária de uma empresa por questões sanáveis, sem que fosse ofertada a oportunidade de sanar os vícios.
Neste artigo, explico o que aconteceu, quais os fundamentos legais e o que esse precedente nos ensina sobre eficiência, economicidade, isonomia e legalidade na gestão pública.
💼 O caso: desclassificação sumária por formalismo excessivo
A empresa Lightbase Serviços e Consultoria em Software Público Ltda. apresentou a proposta mais vantajosa no pregão que buscava contratar empresas para desenvolvimento e manutenção de software com uso de metodologias ágeis, com valor estimado em mais de R$ 9 milhões.
Apesar de ter ofertado a menor proposta, a Lightbase foi desclassificada sob a alegação de que os atestados de capacidade técnica não continham a terminologia exata exigida no Termo de Referência. Em outras palavras, os documentos demonstravam a experiência da empresa, mas não usavam exatamente as mesmas palavras do edital.
O mais preocupante? A pregoeira não abriu diligência para esclarecer a dúvida. Simplesmente desclassificou a empresa de forma sumária.
Enquanto isso, outros concorrentes (inclusive a empresa vencedora, Indra Brasil) receberam diligências, o que levantou dúvidas sobre a isonomia do processo.
🧐 Qual foi a atuação do TCU?
O caso foi levado ao TCU por meio de representação legal da empresa prejudicada. O Tribunal, após análise técnica da Unidade de Auditoria Especializada em Contratações (AudContratações) e manifestação do Ministério Público junto ao TCU, chegou a conclusões importantes.
A decisão do TCU foi clara: houve sim irregularidade. A proposta da Lightbase não deveria ter sido descartada sem diligência, principalmente porque os vícios eram sanáveis e não comprometeriam a essência da proposta. Além disso, a falta de uniformidade no tratamento entre os concorrentes prejudicou a isonomia e a competitividade do certame.
O Tribunal não anulou o contrato, que já estava em andamento, mas determinou que o MIDR não prorrogue o contrato atual com a empresa vencedora após seu término (salvo para garantir continuidade até novo processo). O objetivo é corrigir o curso da contratação pública, sem afetar os serviços essenciais em andamento.
📜 O que são vícios sanáveis e por que são importantes?
Na prática das licitações públicas, um vício sanável é uma falha que pode ser corrigida sem afetar a essência da proposta. Por exemplo:
- Ausência de assinatura em um documento;
- Falta de termo técnico exato em um atestado (como foi o caso);
- Documento com validade vencida, mas que pode ser reapresentado.
O art. 64 da Lei nº 14.133/2021 (nova Lei de Licitações) deixa claro que:
“A administração pública poderá, em qualquer fase da licitação, promover diligências destinadas a esclarecer ou a complementar a instrução do processo, vedada a inclusão posterior de documento ou informação que deveria constar originalmente da proposta.”
Isso significa que o agente público deve permitir a correção de vícios quando isso não interfere no conteúdo da proposta. Negar essa possibilidade, como ocorreu, é não só antieconômico, como também injusto.
⚖️ Princípios violados no caso
A decisão do TCU foi baseada na violação de diversos princípios constitucionais e legais:
- Legalidade: o edital exigia requisitos específicos, mas não impedia a realização de diligências para esclarecer.
- Isonomia: concorrentes foram tratados de forma diferente, com favorecimento à empresa vencedora.
- Economicidade: a proposta da Lightbase era mais barata, mas foi desconsiderada sem análise adequada.
- Competitividade: ao aplicar excessivo rigor formal, o órgão reduziu o número de propostas válidas.
- Eficiência: desconsiderar a melhor proposta sem diligência contraria a busca pela melhor solução para o interesse público.
⚖️ Jurisprudência aplicada pelo TCU
O TCU invocou precedentes importantes para fundamentar sua decisão:
- Acórdão 1.211/2021 – TCU – Plenário
- Acórdão 2.265/2020 – TCU – Plenário
- Acórdão 2.903/2021 – TCU – Plenário
- Acórdão 988/2022 – TCU – Plenário
Todos esses julgados consolidam o entendimento de que desclassificações por falhas sanáveis sem diligência são ilegais. O Tribunal vem há anos combatendo esse tipo de formalismo que prejudica a Administração e as empresas licitantes.
🧩 Argumentos do MIDR e contrapontos
O Ministério, em sua defesa, reconheceu a falha e assumiu que irá melhorar seus processos futuros. Alegou, no entanto, que reverter o contrato atual traria prejuízos operacionais, como:
- Interrupção de sistemas críticos (como o S2iD);
- Riscos à segurança cibernética;
- Custo adicional para contratação emergencial.
Esses argumentos foram considerados válidos apenas para manter o contrato até seu fim, não para justificar sua prorrogação. O TCU deixou claro que o tempo disponível até o término (agosto de 2025) é suficiente para realizar novo certame com segurança e legalidade.
💡 O que aprendemos com esse julgamento?
- Diligência é dever, não favor
Agentes públicos não têm discricionariedade ilimitada para ignorar falhas formais. A diligência é um mecanismo legal obrigatório sempre que houver possibilidade de sanar falhas sem comprometer a lisura do certame.
- Isonomia exige tratamento uniforme
Tratar alguns licitantes com mais rigor e outros com mais flexibilidade é ferir a isonomia. O processo licitatório deve seguir regras iguais para todos, sem exceções de conveniência.
- A proposta mais barata não pode ser ignorada levianamente
O princípio da proposta mais vantajosa para a administração exige que se avalie com cuidado propostas mais econômicas. A simples existência de termos técnicos diferentes não pode ser usada para justificar a eliminação de propostas competitivas.
- O TCU não anula contratos de forma temerária
Mesmo reconhecendo irregularidades, o TCU optou por não interromper o contrato vigente, respeitando a continuidade do serviço público. Isso demonstra maturidade institucional e equilíbrio na atuação do controle.
- O recurso administrativo ainda é um caminho viável
Apesar do processo já ter sido julgado, o conteúdo do acórdão serve como base sólida para argumentos em futuras impugnações, recursos ou até judicializações, inclusive para evitar que situações semelhantes se repitam.
✍️ Conclusão
O Acórdão 641/2025 é um exemplo didático de como o excesso de formalismo pode comprometer a legalidade e a eficiência na gestão pública. A decisão do TCU reafirma valores fundamentais do Direito Administrativo moderno: flexibilidade razoável, equilíbrio entre rigidez legal e eficiência, e principalmente, a valorização da economicidade em benefício do interesse público.
Este caso deve servir como alerta para gestores, licitações futuras, empresas fornecedoras e consultores jurídicos: a lei não pode ser usada como barreira artificial para excluir bons concorrentes, nem para justificar a manutenção de contratos problemáticos.
Se você atua com compras públicas, acompanhe esse tipo de julgamento. São eles que moldam o futuro da governança pública brasileira.
📌 Dica Final
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Muitas vezes, uma diligência negligenciada pode ser o caminho para um recurso vitorioso ou até mesmo uma nova chance em novo certame.